- Senhor prior!... Meu senhor!... Está acontecendo uma grande desgraça!...
De braços erguidos, as mãos espalmadas na carapinha, desesperado, o escravo entrou de rompante pela sacristia e dirigiu-se ao padre Tomé de Torres. Este, que acabara de celebrar a missa da manhã e arrumava, com extremo cuidado, os paramentos no armário, voltou-se lentamente e encarou o rapaz:
- Que se passa Sebastião?
- Montes de gafanhotos estão a devorar as folhas das videiras e as outras plantas da várzea.
Preocupado, o padre benzeu-se e questionou:
- Olha lá Sebastião, não estás a exagerar?
O negro baixou os braços e agitou a cabeça com convicção:
- Não estou não… antes estivesse. Venha ver meu senhor… venha ver.
Após fechar a porta da sacristia, o clérigo juntou-se ao rapaz e, com passo estugado, seguiram a caminho da várzea. Estava um belo dia de Primavera, sem nuvens, e o sol enchia de claridade as casas e as ruas da vila. Mal haviam percorrido uma centena de metros, ouviram clamores que se erguiam de vários pontos da várzea e, da rua do Pombal Velho*, surgiu o Inácio hortelão, trôpego das canelas, desandando, em pressa febril. Ao encará-los, desatou a lamuriar-se:
- Ai que desgraça senhor prior… ai que desgraça nos está acontecendo!
E não havia dúvida que o escravo e o velho tinham razão. Aproveitando a aragem fresca da manhã, vindas dos lados de Espanha, esquadrilhas de gafanhotos, em revoada, pousavam sobre as parras tenras, as couves, os ervilhais, as searas e outras plantas, e desatavam a devorá-las sem dó nem piedade. Atraídas pelo desusado movimento, gaviões e outras aves de rapina aproveitavam, por sua vez, para se banquetear com os insectos, mas nem que se contassem por milhares atenuariam a praga. Perante aquela imagem, desoladora, Tomé de Torres, que possuía uma das melhores vinhas da várzea, não perdeu tempo, quebrou dois ramos de oliveira, deu um ao escravo e, com o outro, desatou a açoitar os gafanhotos e a esmagá-los com os sapatos. Mas era como tentar esvaziar a ribeira com um cântaro e, cansado, resolveu retirar-se, não sem que antes ordenasse ao rapaz:
- Sebastião… continua a matá-los… mas não partas as hastes das videiras.
Já no adro, ouviu badalar o sino da vereação e dirigiu-se, de imediato, para os paços do concelho. A essa hora, na praça, coalhada de gente, reinava grande agitação. Logo que se aproximou, foi rodeado por várias pessoas, que desataram a fazer-lhe perguntas, e a emitir as mais desencontradas opiniões. Perante aquela agitação, de baratas tontas, o padre não se conteve:
- Em vez de estarem para aqui a barafustar… não era melhor irem para as vossas vinhas e hortas matar gafanhotos?... – e sentenciou – A lamúria e o baixar de braços, só acrescentam desgraça à desgraça. Vão!... Vão!...Vão com Deus!...
Mas eles não foram e, curiosos, ficaram esperando que a Câmara tomasse uma decisão. E, dada a gravidade da situação, não tardou que os juízes, os vereadores o procurador, o escrivão e mais alguns homens se reunissem. Sem excepção, foram unânimes em reconhecer que estavam perante a eminência de uma calamidade, e o juiz André Luís sintetizou numa frase o sentimento colectivo:
- É da várzea que vem uma parte importante do nosso alimento… e é dela que vem o vinho… uma das nossas maiores fontes de receita. Se os gafanhotos devorarem tudo, teremos a fome e a miséria a baterem-nos à porta. Que Deus Nosso Senhor tenha compaixão de nós… e nos livre desta medonha praga.
O vereador Luís Vaz, o mais velho e determinado, propôs:
- Avancemos pois com medidas… e rapidamente…
Mas se o problema era fácil de equacionar, era difícil de resolver. Que podiam eles fazer? Após larga e acalorada discussão, determinaram que se acendessem dezenas de fogueiras, bem fumarentas, na várzea, para afugentar os gafanhotos. Enquanto isso, grupos de homens e mulheres, lado a lado, como ceifeiros, iriam com ramos verdes batendo o terreno para esmagá-los. Foi, também, pedido ao prior, que celebrasse uma missa a solicitar a intervenção divina, e mandasse queimar alguns arráteis de cera em honra dos santos. E tudo isso se fez.
Na sua milenária sabedoria, diz o povo que o homem põe e Deus dispõe. E Deus dispôs que a provação continuasse. Não obstante as fogueiras, os esforços e as devoções, nuvens intermitentes de insectos continuaram a abater-se sobre as culturas, perante a impotência e o desespero dos grandolenses. Tudo parecia, pois, encaminhar-se para uma catástrofe sem remédio.
Numa noite, estando o prior mergulhado em profunda oração, viu surgir perante si o apóstolo S. Pedro, que lhe disse:
- Tomé… a praga de gafanhotos, como as que atingiram o Egipto no tempo de Moisés, é uma manifestação do descontentamento de Deus Nosso Senhor.
Mal refeito do susto, o clérigo tartamudeou:
- Sim?!.... –– E como poderemos nós… pobres pecadores… atenuar o seu descontentamento e alcançar a sua aprovação?
Nimbado de uma doce auréola, bonacheirão, tilintando as chaves que lhe pendiam do pulso, o santo esclareceu:
- Tomé!… Tu és pastor e sabes a resposta!…. Que haja maior virtude nas tuas ovelhas…. Elas que façam uma grande procissão… e construam uma nova igreja a oeste da vila, no sítio aonde começa a Várzea. Se o fizerem, apelarei à misericórdia do Senhor, e intercederei junto de Ele para que cesse a praga.
Depois de passar o resto da noite em oração, na manhã seguinte, o prior mandou reunir os clérigos, os representantes do povo e das irmandades e, alvoraçado, relatou o espantoso acontecimento. Sensibilizados, todos juraram tornar-se melhores, realizar uma grande procissão, com cânticos, música e foliões, e mandar construir a igreja no local indicado pelo santo. E logo que se espalhou a notícia, homens e mulheres, velhos e novos, atemorizados e compungidos, acorreram aos magotes a confessar-se e a comungar. Imbuídos do espírito de penitência, abstiveram-se do exercício do pecado, o que tornou Grândola, por algum tempo, num dos locais de maior virtude e devoção da Cristandade.
Na noite que se seguiu à mais vistosa procissão que se realizou na vila, sem que nada o fizesse prever, abriram-se de par em par as cataratas do céu, e abateu-se sobre a várzea uma chuva tão intensa que mais parecia o dilúvio. Algumas almas, de menor fé, acreditaram, atemorizadas, que a chuva torrencial iria concluir o que os gafanhotos haviam começado. Puro engano. No dia seguinte, sob um sol radioso, as plantas resplandeciam viçosas e sem mácula, e os cadáveres dos vorazes ortópteros, como canoas naufragadas, deslizavam no rio Davino. Quem estivesse atento, podia ouvir nitidamente, pairando sobre o murmúrio das águas, as vozes dos anjos cantando maviosos louvores à clemência divina.
Perante as extraordinárias provas da bondade de Deus, com que foram obsequiados, seria de esperar que os grandolenses continuassem a trilhar, beatificamente, o caminho da virtude. Mas não foi isso o que sucedeu. Uma vez libertos da praga, voltaram-se de novo para as preocupações do dia a dia, e esqueceram promessas e virtudes. Enredados, uma vez mais, nos ardis do príncipe das trevas, recaíram na arrogância, na gula, na fornicação, no roubo, na inveja, na maledicência e nos outros pecados que atafulham o mundo de candidatos à eterna perdição. As estacas, que delimitavam o espaço onde a igreja se deveria construir, apodreceram à chuva e ao sol. Os confessionários ficaram vazios e as hóstias por deglutir. E com tudo isso se entristeceu o coração do prior, que debalde tentou, com mansas palavras e luzidas celebrações, trazer de novo as suas ovelhas ao aprisco da virtude.
Traído na sua boa fé, irado, o Pai celeste fez abater-se sobre Grândola uma nova praga. Uma noite foi suficiente para cachos de minúsculos pulgões cobrissem as plantas rasteiras, as vinhas e as árvores frutíferas, de uma estranha geada de tons verdes cinza eivada de reflexos metálicos. Com as hastes pendentes, como chorões moribundos, as videiras da várzea eram a imagem da desolação. Arrepelando os cabelos, de braços erguidos, num coro de queixumes desesperados, os grandolenses assistiam impotentes à agonia das suas culturas, vinhas e árvores.
Reunida a Câmara, de emergência, os homens da governança concluíram, desalentados, que apenas lhes restava erguer os olhos ao céu e implorar a intervenção do divino Criador. E vieram de novo as novenas, os círios e as procissões. Pela segunda vez, o santo porteiro desceu das celestiais alturas e dialogou com o prior Tomé de Torres. E os grandolenses tornaram a fazer filas nos confessionários e nas comunhões, e afastaram-se do pecado e das artimanhas de Belzebu. E de novo o Omnipotente deu vazão à sua infinita bondade. Numa noite de lua cheia, milhões e milhões de pequenas joaninhas começaram a descer do céu, docemente, em nuvens compactas, cobriram o manto dos pulgões e os campos passaram de cinza a vermelho. Decorridos poucos dias, terminado o seu trabalho de limpeza, as joaninhas levantaram voo e desapareceram. De olhos arregalados, os grandolenses verificaram que nem um pulgão ficara para amostra. Como que tonificadas, as videiras e as outras plantas haviam adquirido a sua anterior pujança e, agradecidas, erguiam para os céus as suas hastes viçosas. E todos, velhos e novos, pequenos e grandes, a uma só voz, bradaram de novo e bem alto:
- Louvado seja o Senhor Nosso Deus… e glória ao santo apóstolo Pedro!
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Nota final: Decorrido pouco tempo sobre estes espantosos acontecimentos, em 26 de Maio de 1584, o Município de Grândola encarregou o carreteiro José Gonçalves de trazer cem carradas de pedra para a nova igreja. Em 18 de Agosto do mesmo ano, foi nomeado o escrivão dos órfãos, Gonçalo Calado, para mordomo das obras. Em 29 de Março de 1585, foi enviada à Mesa da Consciência e das Ordens, uma petição elaborada pelo tabelião Martim Nunes, a solicitar licença para se construir a igreja. Em 22 de Maio desse ano, foi atribuído o alvará de licença, em nome de Filipe I, onde se diz que: “[…] os juizes vereadores E mais povo da villa de grandola [...] tem vontade he devoção de Edificarem huma caSa ao apostolo Sam Pedro em satisfação das muitas merces que por sua jntercessão [...] tem feitas em lhe tirar os gafanhotos E pulgão E porque a não podem fazer sem licença minha […]. Em 1 de Maio de 1604, foi fundada pelo padre Luís Roubão das Donas, a Irmandade de S. Pedro, que se manteve activa até aos primórdios do século XX. Finalmente, em 15 de Julho de 1606, tendo já falecido Tomé de Torres, e sendo prior de Grândola o padre Barnabé Afonso Barradas, a igreja foi dado por concluída e entregue à Irmandade.
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* Actual Rua Anchieta.
GERMESINDO SILVA